segunda-feira, 11 de dezembro de 2023

A violência patrimonial da Lei Maria da Penha em conflito com os artigos 181 e 182 do Código Penal

 


Em agosto de 2.006, foi promulgada a Lei nº 11.340/ 2006, conhecida como Lei Maria da Penha, que criou mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher, que materializou o previsto no § 8º do Art. 226 da Constituição FederalVerbis:

"O Estado assegurará a assistência à família na pessoa de cada um dos que a integram, criando mecanismos para coibir a violência no âmbito de suas relações" (§ 8º, Art. 226, da CF). .

Lei Maria da Penha elencou as diversas forma de violência doméstica contra a mulher, entre elas a patrimonial:

"São formas de violência doméstica e familiar contra a mulher, entre outras: (...) a violência patrimonial, entendida como qualquer conduta que configure retenção, subtração, destruição parcial ou total de seus objetos, instrumentos de trabalho, documentos pessoais, bens, valores e direitos ou recursos econômicos, incluindo os destinados a satisfazer suas necessidades" (inciso IV, do Art. , da Lei nº 11.340/ 2006)

Referida Lei criou e agravou punições ao agressor, ao alterar o Códig0 de Processo Penal ( CPP), o Código Penal ( CP) e a Lei de Execução Penal ( LEP), bem como criou os Juizados de Violência Doméstica e Familiar Contra a Mulher.

Ocorre, no entanto, que mesmo com edição da Lei em 2.006, os Arts. 181 e 182 do Código Penal não foram modificados, continuando com a redação original, configurando "escusas absolutórias" entre cônjuges. Vejamos:

Art. 181 - É isento de pena quem comete qualquer dos crimes previstos neste título, em prejuízo:
I - do cônjuge, na constância da sociedade conjugal;
II - de ascendente ou descendente, seja o parentesco legítimo ou ilegítimo, seja civil ou natural.
Art. 182 - Somente se procede mediante representação, se o crime previsto neste título é cometido em prejuízo:
I - do cônjuge desquitado ou judicialmente separado;
II - de irmão, legítimo ou ilegítimo;
III - de tio ou sobrinho, com quem o agente coabita.

A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça (STJ) não recepcionou a tese de que os arts. 181 e 182 do Código Penal teriam sido derrogados pela Lei Maria da Penha, não afastando sua aplicação aos crimes e violência doméstica. Nesse sentido 0 RHC nº 42.918/ RS:

RECURSO ORDINÁRIO EM HABEAS CORPUS. TENTATIVA DE ESTELIONATO (ARTIGO 171, COMBINADO COM O ARTIGO 14, INCISO II, AMBOS DO CÓDIGO PENAL). CRIME PRATICADO POR UM DOS CÔNJUGES CONTRA O OUTRO. SEPARAÇÃO DE CORPOS. EXTINÇÃO DO VÍNCULO MATRIMONIAL. INOCORRÊNCIA. INCIDÊNCIA DA ESCUSA ABSOLUTÓRIA PREVISTA NO ARTIGO 181, INCISO I, DO CÓDIGO PENAL. IMUNIDADE NÃO REVOGADA PELA LEI MARIA DA PENHA. DERROGAÇÃO QUE IMPLICARIA VIOLAÇÃO AO PRINCÍPIO DA IGUALDADE. PREVISÃO EXPRESSA DE MEDIDAS CAUTELARES PARA A PROTEÇÃO DO PATRIMÔNIO DA MULHER EM SITUAÇÃO DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR. INVIABILIDADE DE SE ADOTAR ANALOGIA EM PREJUÍZO DO RÉU. PROVIMENTO DO RECLAMO.
1. O artigo 181, inciso I, do Código Penal estabelece imunidade penal absoluta ao cônjuge que pratica crime patrimonial na constância do casamento.
2. De acordo com o artigo 1.571 do Código Civil, a sociedade conjugal termina pela morte de um dos cônjuges, pela nulidade ou anulação do casamento, pela separação judicial e pelo divórcio, motivo pelo qual a separação de corpos, assim como a separação de fato, que não têm condão de extinguir o vínculo matrimonial, não são capazes de afastar a imunidade prevista no inciso I do artigo 181 do Estatuto Repressivo.
3. O advento da Lei 11.340/2006 não é capaz de alterar tal entendimento, pois embora tenha previsto a violência patrimonial como uma das que pode ser cometida no âmbito doméstico e familiar contra a mulher, não revogou quer expressa, quer tacitamente, o artigo 181 do Código Penal.
4. A se admitir que a Lei Maria da Penha derrogou a referida imunidade, se estaria diante de flagrante hipótese de violação ao princípio da isonomia, já que os crimes patrimoniais praticados pelo marido contra a mulher no âmbito doméstico e familiar poderiam ser processados e julgados, ao passo que a mulher que venha cometer o mesmo tipo de delito contra o marido estaria isenta de pena.
5. Não há falar em ineficácia ou inutilidade da Lei 11.340/2006 ante a persistência da imunidade prevista no artigo 181, inciso I, do Código Penal quando se tratar de violência praticada contra a mulher no âmbito doméstico e familiar, uma vez que na própria legislação vigente existe a previsão de medidas cautelares específicas para a proteção do patrimônio da ofendida.
6. No direito penal não se admite a analogia em prejuízo do réu, razão pela qual a separação de corpos ou mesmo a separação de fato, que não extinguem a sociedade conjugal, não podem ser equiparadas à separação judicial ou o divórcio, que põem fim ao vínculo matrimonial, para fins de afastamento da imunidade disposta no inciso I do artigo 181 do Estatuto Repressivo.
7. Recurso provido para determinar o trancamento da ação penal apenas com relação ao recorrente.
(STJ, RHC nº 42.918/ RS, rel. Min. Jorge Mussi, 5a Turma, julgado em 5/8/2014, DJe de 14/8/2014).

Portanto, só após a separação de fato, o divórcio ou a dissolução da união estável, se poderia tomar alguma providência. Exceto se o crime for cometido com emprego de grave ameaça ou violência contra a pessoa, ou ainda quando a vítima for maior de 60 anos, conforme previsto no Art. 183 do Código Penal:

Art. 183 - Não se aplica o disposto nos dois artigos anteriores:
I - se o crime é de roubo ou de extorsão, ou, em geral, quando haja emprego de grave ameaça ou violência à pessoa;
II - ao estranho que participa do crime.
III – se o crime é praticado contra pessoa com idade igual ou superior a 60 (sessenta) anos.

Como sabido, os relacionamos abusivos são marcados por longos períodos de silêncio da vítima, muitas vezes se tornando públicos quando já na fase da violência física, quando o patrimônio já foi dilapidado.

Cumpre frisar que existe em trâmite o Projeto de Lei 3.764/ 2004, na Câmara dos Deputados, que busca alterar o art. 182 e revoga o art. 181 do Decreto-Lei nº 2.848/ 1940 ( Código Penal).

Na Justificativa o autor ressalta que "Para melhor adequar o texto a realidade brasileira e não beneficiar o parente que praticou a infração contra a própria família, entendemos que a melhor hipótese seria a revogação do art. 181, pois traz a isenção de pena, quando o mais correto deve ser a representação, deixando para a família a decisão da responsabilidade penal ou não".

Conclui-se, portanto que, para por termo a discussões sobre punição da violência patrimonial doméstica é necessária a imediata revogação do Art  181 do Código Penal, com a urgente aprovação do PL 3.764/ 2004.

Não se mostra razoável que decorridas quase duas décadas, esse Projeto de Lei não tenha sido concluído pelo Legislativo. Casos análogos continuarão desaguando no Judiciário, não raro, chamado de "ativista".


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