segunda-feira, 5 de fevereiro de 2024

O impacto dos julgados do STF e do STJ sobre os direitos das pessoas LGBT+

 

Diante da lacuna legislativa, as pessoas LGBTQIAP+ socorrem-se do Poder Judiciário para a efetiva garantia de seus direitos e/ ou para obstar a prática de atitudes discriminatórias e preconceituosas.

Contemplando o passado da jurisprudência desses tribunais superiores, é possível identificar como evoluiu o tratamento desses temas até o presente.

Observa-se que as demandas da vida real, analisadas pelos tribunais superiores, muitas vezes evoluem para o ordenamento jurídico, ainda que impostas, ante a omissão legislativa, especialmente em temas sensíveis.

As mudanças no comportamento social são frequentes e céleres, reclamando inovação normativa que só virá a longo prazo. Cabe, portanto, aos tribunais superiores, exercerem suas competências constitucionais, garantindo e reconhecimento direitos.

Os direitos da população LGBTQIAP+ foram declarados nas cortes brasileiras com fulcro nos princípios da isonomia e da dignidade da pessoa humana, sem que houvesse previsão expressa nas normas legais e administrativas.

Vejamos alguns julgados:

União Estável e Casamento

Em maio de 2011, o Plenário do Supremo Tribunal Federal (STF), de forma unânime, equiparou as relações entre pessoas do mesmo sexo às uniões estáveis entre homens e mulheres, reconhecendo, assim, a união homoafetiva como um núcleo familiar, passando a ter os mesmos direitos e deveres previstos na lei 9.278/1996 ( Lei da União Estável). A decisão foi tomada no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade ADI 4277 e da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental ADPF 132. As ementas estão reproduzidas neste nosso artigo.

Ocorre que, até aquela data, ante a omissão do Legislativo, os casais homoafetivos que buscavam a formalização de suas relações podiam obter decisões favoráveis ou desfavoráveis da Justiça, trazendo insegurança jurídica para o casal, eventuais dependentes, herdeiros e terceiros. Esse entendimento do STF, de natureza vinculante, afastou qualquer interpretação do dispositivo do Código Civil que impedisse o reconhecimento da união entre pessoas do mesmo sexo/ gênero como entidade familiar. Destacou o STF que o inciso IV, do artigo 3º, da Constituição Federal, veda qualquer discriminação em razão de sexo, raça, cor e que, nesse sentido, ninguém pode ser diminuído ou discriminado em função de sua orientação sexual. “O sexo das pessoas, salvo disposição contrária, não se presta para desigualação jurídica”, afirmou o relator ministro Ayres Britto.

Ainda em 2011, o STJ entendeu não haver impedimento legal para que pessoas do mesmo sexo se casassem ( RESP 1.183.378/ RS).

Dois anos depois, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), citando referida decisão e as dos STF ( ADI 4277 e ADPF 132), editou a Resolução 175/ 2013 dispondo sobre a habilitação, celebração de casamento civil, ou de conversão de união estável em casamento, entre pessoas de mesmo sexo. Trazia, também, a expressa proibição de que autoridades cartorárias se recusassem a realizar o casamento homoafetivo.

Legitimidade para propor ação penal

STJ = Crime de calúnia contra pessoa morta. União estável homoafetiva. Ajuizamento de ação penal privada por companheira. Legitimidade. Status de cônjuge. Interpretação extensiva. Art.  c/c art. 24§ 1º, do CPP. A companheira, em união estável homoafetiva reconhecida, goza do mesmo status de cônjuge para o processo penal, possuindo legitimidade para ajuizar a ação penal privada. (STJ, Informativo de Jurisprudência nº 0654, de 13.9.2019 - STJ, APn 912/ RJ).

Vara de família

A vara de família é a competente para apreciar e julgar pedido de reconhecimento e dissolução de união estável homoafetiva (STJ – Jurisprudência em tese – Edição nº 50 – de 11.02.2016 - Julgados: REsp 1291924/ RJ; REsp 964489/ RS; REsp 827962/ RS (Informativo de Jurisprudência nº 524).

Sucessão - Herança

Equiparação da União Estável ao Casamento para fins sucessórios - No ano de 2017, o STF, ao julgar os RE 878694 e RE 646721, reconheceu a inconstitucionalidade do artigo 1.730 do Código Civil, passando a aplicar o artigo 1.829 do Código Civil também nas sucessões das famílias formadas pela união estável.

Cumpre lembrar que esse já era o entendimento do STJ, inclusive para casais do mesmo sexo: "Comprovada a existência de união homoafetiva, é de se reconhecer o direito do companheiro sobrevivente à meação dos bens adquiridos a título oneroso ao longo do relacionamento" (STJ – Jurisprudência em tese nº 50/ 2016 - EDcl no REsp 633713/RSREsp 930460/PR; e Informativo de Jurisprudência nº 0472/ 2011 - REsp 1.085.646/ RS).

Meio militar

Em 2015, o STF, ao julgar a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental ADPF 291/ DF, reconheceu a inconstitucionalidade dos termos “pederastia” e “homossexual ou não” no Código Penal Militar.

Colhe-se da ementa: "Não se pode permitir que a lei faça uso de expressões pejorativas e discriminatórias, ante o reconhecimento do direito à liberdade de orientação sexual como liberdade existencial do indivíduo. Manifestação inadmissível de intolerância que atinge grupos tradicionalmente marginalizados" leia a íntegra decisão aqui).

Homofobia e transfobia como Racismo

Em 2019, o Supremo Tribunal Federal (STF), ao julgar a Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão ADO 26 e o Mandado de Injunção MI 4733, enquadrou a homofobia e a transfobia como crimes de racismo:

O Plenário do STF entendeu que houve omissão inconstitucional do Congresso Nacional por não editar lei que criminalize atos de homofobia e de transfobia, no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão ADO 26, de relatoria do ministro Celso de Mello, e do Mandado de Injunção MI 4733, relatado pelo ministro Edson Fachin. Por maioria votaram pelo enquadramento da homofobia e da transfobia como tipo penal definido na Lei do Racismo (Lei 7.716/1989) até que o Congresso Nacional edite lei sobre a matéria.

Adoção

O STJ, entende que "não há óbice à adoção feita por casal homoafetivo desde que a medida represente reais vantagens ao adotando". Devendo prevalecer, sempre, o princípio do melhor interesse da criança (STJ, HC 404545 / CE; REsp 1525714 / PR; REsp 1333086 / RO; REsp 1540814 / PR; REsp 1281093 / SP; e REsp 889852 / RSJurisprudência em Teses - Edição nº 27/ 2014).

Doação de sangue

Em 2020 - Através da Ação Direta de Inconstitucionalidade ADI 5543/ DF, o STF declarou inconstitucional a proibição discriminatória da doação de sangue por homens homossexuais ou bissexuais e travestis.

Escolas

É inconstitucional lei municipal que proíba a divulgação de material com referência a “ideologia de gênero” nas escolas municipais. Ao proibir a divulgação de material que trata de orientação sexual e identidade de gênero, o município descumpre com o dever estatal de promover políticas de inclusão e de igualdade, contribuindo para a manutenção da discriminação com base na orientação sexual e identidade de gênero. Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental ADPF 457/ GO e ADPF 461/ PR).

Combate a discriminação no Poder Judiciário

Em 14/11/2023, o Plenário do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), em decisão unânime, aprovou resolução com a finalidade de combater, no Poder Judiciário, a discriminação à orientação sexual e à identidade de gênero e regulamentar a adoção, a guarda e tutela de crianças e adolescentes por casal ou família monoparental, homoafetiva ou transgênera.

As diretrizes aprovadas no Ato Normativo 0007383-53.2023.2.00.0000 determinam aos tribunais e à magistratura que zelem pela igualdade de direitos no combate a qualquer forma de discriminação à orientação sexual e à identidade de gênero. De acordo com o texto, são vedadas, nos processos de habilitação de pretendentes e nos casos de adoção de crianças e adolescentes, guarda e tutela, manifestações contrárias aos pedidos pelo fundamento de se tratar de família monoparental, homoafetivo ou transgênero. “O CNJ dá vez e voz à uma determinação constitucional” e “Essa é a materialização de um mandamento constitucional, que passa pela dignidade da pessoa humana”, avaliou o senador Fabiano Contarato, autor do ofíco que originou a resolução, ao citar o artigo 3º, inciso 4º, da Constituição Federal, que traz como fundamento da República Federativa do Brasil a promoção do bem-estar de todos e abolição de toda e qualquer forma de discriminação.

Lei Maria da Penha

Decidiu o STJ que as medidas protetivas previstas na Lei n. 11.340/2006 ( Lei Maria da Penha) são aplicáveis às minorias, como transexuais, transgêneros, cisgêneros e travestis em situação de violência doméstica, afastado o aspecto meramente biológico - (Resp REsp 1977124/ SP - Jurisprudência em teses nº 205/ 2022 e 209/ 2023 e Informativo de Jurisprudência nº 732).

Mudança de prenome e gênero

Segundo o STJ, a pessoa transgênero tem direito fundamental subjetivo à alteração de seu prenome e de sua classificação de gênero no registro civil independentemente da realização de cirurgia de transgenitalização (STJ, REsp 1860649/ SPREsp 1561933/ RJ. REsp 1626739/ RSREsp 1539583/ DF; REsp 1796827/ ES; REsp 1631644/ MT; (Informativo de Jurisprudência nº 608) - (Jurisprudência em Teses nº 138 e Jurisprudência em teses nº 209/ 2023).

CNJ, Provimento nº 73 de 28/06/2018, dispõe sobre a averbação da alteração do prenome e do gênero nos assentos de nascimento e casamento de pessoa transgênero no Registro Civil das Pessoas Naturais (RCPN). Em observância a ADI 4.275/ STF e ao RE 670422/ RJ.

Gênero neutro

Pessoa obtém na Justiça direito de registrar que seu gênero é neutro. A Justiça de Santa Catarina, em uma das primeiras decisões sobre a matéria no Brasil, reconheceu o direito da pessoa declarar que seu gênero é neutro. O caso concreto envolve certa complexidade. Quando nasceu, a pessoa foi registrada como sendo do gênero masculino, mas nunca se identificou como tal e tampouco com o gênero feminino. Extrajudicialmente, tentou mudar na certidão de nascimento o nome e o sexo para "não identificado", com informação de necessária análise judicial sobre o gênero neutro. Por isso, ingressou na Justiça e seu caso foi julgado pela juíza Vânia Petermann. O principal ponto enfrentado na decisão era saber se seria possível reconhecer, juridicamente, o gênero neutro com base na Constituição. Para tanto, foi necessário analisar se o pleito estava em contraste com a norma infraconstitucional - artigo 54§ 2º, da Lei 6.015/1973 - que prescreve sobre o registro civil, essencial para todos os atos de cidadania ( continue lendo aqui).

Não binário

Determinação pioneira da CGJ, de 22/4/2022, autoriza pessoas não binárias a mudar registros de prenome e gênero no cartório. Pessoas não binárias (aquelas que não se identificam nem como homem nem como mulher) agora poderão alterar prenomes e gêneros no seu registro de nascimento, conforme a identidade autopercebida por elas, independentemente de autorização judicial. Conforme Provimento assinado nesta tarde (22/04) pelo Corregedor-Geral da Justiça, Desembargador Giovanni Conti, a mudança poderá incluir a expressão "não binário" mediante requerimento feito pela parte junto ao cartório. A determinação é pioneira, uma vez que permite a alteração de forma administrativa, sem necessidade de buscar a via judicial.A medida é válida para pessoas maiores de 18 anos completos habilitadas à prática de todos os atos da vida civil. (continue lendo aqui).

Intersexual

Justiça do Acre autoriza criança intersexual a mudar o nome e o gênero na certidão de nascimento. Uma decisão pioneira e inédita no Acre, em 18.04.2018, repercutiu em todo o País. A Justiça determinou, após liminar requerida pela OAB-AC, a alteração do nome de uma criança de três anos, que nasceu com os dois sexos, na certidão de nascimento. A mãe só descobriu a ambiguidade sexual dias depois do registro do recém-nascido. Assim, a criança sempre foi chamada pelo nome feminino, além de usar cabelo comprido e roupas de menina. No entanto, em agosto do ano de 2.017, a mãe conseguiu realizar um exame cariótipo, que analisa a quantidade e a estrutura dos cromossomos em uma célula, e o resultado apontou que a criança é geneticamente um menino. No processo judicial impetrado pela OAB-AC foi pedida e concedida liminar. Agora, além de mudar o nome na certidão de nascimento, a criança, registrada como menina, também vai ter o sexo alterado para masculino no documento. Segundo o presidente da Comissão da Diversidade Sexual da OAB do Acre, Charles Brasil, responsável pela ação, “a decisão é importante ao proporcionar dignidade a essa criança, e também por ser a primeira vez em que uma criança intersexo tem a mudança do nome e sexo garantido por um juiz de primeiro grau no País” ( continue lendo aqui).

Aposentadoria

Para o servidor que tenha realizado alteração de gênero/ sexo deverá ser considerado o gênero que está constante no registro civil de pessoa natural (certidão de nascimento) no momento do requerimento do benefício previdenciário. E se a alteração do registro do gênero ocorrer após o requerimento de aposentadoria, a concessão do benefício e a apreciação do ato, para fins de registro, deve observar a nova condição. Esse foi o entendimento do Tribunal de Contas de Santa Catarina, em 7/2/2023, em resposta à consulta formulada pelo Instituto de Previdência de Itajaí (CON 20/00596880), sobre a aplicabilidade das regras de aposentadoria em casos de mudança de sexo/gênero. A base para o novo prejulgado da Corte de Contas está em consonância com orientação jurisprudencial do Supremo Tribunal Federal, na tese de Repercussão Geral dos Temas 761 e 445, e do Superior Tribunal de Justiça, no julgamento do Recurso Especial nº 1.626.739. A decisao do TCE/SC estabelece ainda que, em atendimento ao princípio da dignidade da pessoa humana e da vedação à discriminação, é defeso ao ente público responsável pela análise de processos de aposentadoria proceder a tratamento diferenciado quando da tramitação de requerimentos de aposentadorias de servidores que promoveram a alteração de seu gênero, atestada pelo documento de registro civil.

União Estável Poliafetiva

Em 2018 o Conselho Nacional de Justiça decidiu acerca da impossibilidade de reconhecimento extrajudicial de poliafetividade como entidade familiar e determinou a proibição de lavratura de escrituras de uniões poliafetivas por Tabelionatos de Notas.

No entanto, em 2023, a Justiça gaúcha reconheceu a união poliafetiva, composta com um homem e duas mulheres, o popular"trisal". Leia aqui, meu artigo sobre o tema.

EUA - Casamentos homoafetivos e inter-raciais

O Congresso dos EUA acaba de aprovar projeto de lei que protege casamentos homoafetivos e inter-racias. Apesar da Suprema Corte daquele país ter legalizado o casamento inter-racial em 1.967 e o homoafetivo em 2.015, sua nova composição se mostrou disposta a reverter seus próprios precedentes, como fez em junho de 2.022, quando anulou uma decisão histórica de 1.973, que legalizava o aborto em todo os EUA. As decisões judiciais recentes se tornaram mais propensas a favorecer conceitos e temas religiosos em detrimento do que antes se consideravam liberdades individuais. Razão pela qual a Câmara dos Deputados e o Senado dos Estados Unidos aprovaram lei que prevê o reconhecimento federal dessas uniões, proibindo que os Estados rejeitem a validade de casamentos com base em sexo, raça ou etnia. A lei foi sancionada pelo presidente Biden em 13/12/2022.

Fontes: CNJ; STF; STJ; TJRS, TJSC, TJAC. Meus artigos disponibilizados no Blog https://wanderfernandes.blogspot.com/

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