quarta-feira, 7 de fevereiro de 2024

Prova de venda de veículo automotor, segundo o STJ. Admite-se prova que não seja a transferência no DETRAN?

 Publicado por Wander Fernandes

A venda de carros usados por particulares, embora seja uma prática comum, pode resultar em inúmeras complicações se a transação não for concluída com a efetiva transferência da posse do veículo negociado.

Esse tema foi analisado pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ) em 1993. Um homem envolvido em um acidente moveu uma ação de reparação de danos contra um cidadão que tinha sido proprietário do veículo causador do acidente. Entretanto, o cidadão alegou que não poderia fazer parte da ação, pois havia vendido o carro antes do acidente, e o comprador não havia realizado a regular transferência no órgão competente.

Inicialmente, a decisão foi favorável ao homem, mas, em apelação, o Tribunal de Justiça do Estado de Goiás entendeu que o antigo dono do veículo não poderia ser responsabilizado pelos danos resultantes do acidente. Isso porque, mesmo que o novo proprietário não tivesse transferido legalmente o veículo para o seu nome, tinha sido comprovado documentalmente que o veículo havia sido vendido antes do incidente.

Inconformado, o homem recorreu ao STJ argumentando que o antigo proprietário ainda deveria ser responsável pelos danos causados, uma vez que o veículo estava registrado em seu nome, mesmo após a venda.

O relator do recurso, Ministro Eduardo Ribeiro, explicou que responsabilizar o ex-proprietário pelos danos decorrentes de um acidente envolvendo um veículo vendido só porque a transferência não havia sido realizada junto à repartição de trânsito seria simplista e injusto. Ele destacou que a prova da alienação poderia ser feita por outros meios.

O Ministro salientou que, ao contrário da propriedade imobiliária, a transcrição do título de aquisição não era essencial para a transferência de propriedade de um veículo.

O contrato válido entre vendedor e comprador, seguido da entrega do veículo, era suficiente para efetivar a transferência de domínio. No caso em questão, o Tribunal de Justiça tinha demonstrado que a venda do veículo havia sido devidamente comprovada.

Com esse entendimento, o Tribunal da Cidadania negou provimento ao recurso, mantendo a decisão que isentava o antigo dono do veículo da responsabilidade pelos danos decorrentes do acidente.

Fonte: STJ, Seção de Atendimento, Pesquisa e Difusão Documental, "Momento Arquivo", Edição nº 58, de 31/01/2024.

Notas minhas:

1.) O julgado acima refere-se ao processo REsp 34.276/ GO, que restou assim ementado:

AUTOMOVEL - ALIENAÇÃO - PROVA. A circunstancia de não se haver operado a transferência, junto a repartição de trânsito, e de não se ter diligenciado o registro na serventia de títulos e documentos não obsta que a prova da alienação se faça por outros meios (...) (STJ, REsp 34.276/GO, relator Ministro Eduardo Ribeiro, 3a Turma, julgado em 18/5/1993, DJ de 7/6/1993, p. 11260).

2.) Outros julgados do STJ no mesmo sentido:

2.1) "PROCESSO CIVIL E CIVIL. INDENIZAÇÃO. ACIDENTE DE TRÂNSITO. RESPONSABILIDADE CIVIL. PROPRIEDADE DO VEICULO CAUSADOR DO SINISTRO. PROVA. DENUNCIAÇÃO DA LIDE. REGISTRO. RECURSO DESPROVIDO. I - O alienante de automóvel, ao realizar a efetiva tradição ao adquirente e emitir autorização para transferência junto ao Detran , exime-se de responsabilidade pelas consequências advindas da ulterior utilização do veículo pelo novo proprietário. II - Em linha de princípio, a denunciação da lide não se presta a substituição da parte passiva. Contudo, se o réu alega ser parte ilegítima e ao mesmo tempo denuncia a lide ao verdadeiro responsável, e este, aceitando a litisdenunciação, contesta o pedido formulado pelo autor, passando a condição de litisconsorte passivo, não há prejuízo em que a sentença dê pela carência da ação, em relação ao denunciante, e pela procedência ou improcedência da pretensão quanto ao denunciado" (STJ, REsp n. 23.039/ GO, relator Ministro Sálvio de Figueiredo Teixeira, Quarta Turma, julgado em 25/11/1992, DJ de 1/2/1993, p. 465);
2.2) "(...) III - Por força do art. 620 e seguintes do CC/ 1916 (atual art. 1.267 do CC/ 2002), a transferência da propriedade de veículo automotor se dá com a tradição, não sendo necessária a transferência do DETRAN (...). (STJ, REsp 162.410/ MS, relator Ministro Adhemar Maciel, 2a Turma, julgado em 21/5/1998, DJ de 17/8/1998, p. 58);
2.3) "(...) Prova da propriedade e da boa-fé da aquisição do veículo. Registro de veículos. (...) A transcrição do registro do veículo no órgão público competente não consubstancia prova inequívoca da propriedade do bem, mas mero trâmite burocrático que nem sempre é efetivado no momento em que o contrato de compra e venda é efetivado, mediante a entrega do bem ao comprador de boa-fé, mediante simples tradição (...)"(STJ, RMS n. 8.836/SP, relator Ministro Vicente Leal, 6a Turma, julgado em 1/7/1998, DJ de 8/9/1998, p. 121);
2.4) " (...) A jurisprudência desta eg. Corte se orienta no sentido de considerar que o "fato de não ter sido realizada a transferência de propriedade do automóvel autuado junto ao DETRAN não obsta que a prova da alienação se faça por outros meios" (STJ, REsp 599.620/RS, Rel. Ministro Luiz Fux, 1a Turma, julgado em 15/4/2004, DJ de 17/5/2004, p. 153);
2.5) Julgado acima citado na ementa do AgRg no Ag 658.606/ MG, relatora Ministra Maria Isabel Gallotti, 4a Turma, julgado em 14/8/2012, DJe de 28/8/2012; e
2.6) Citado também na ementa do AgRg no AgRg no AREsp 423.075/ MS, relator Ministro Raul Araújo, 4a Turma, julgado em 23/6/2015, DJe de 3/8/2015).

3.) Súmula 132, do STJ:

"A ausência de registro da transferência não implica a responsabilidade do antigo proprietário por dano resultante de acidente que envolva o veículo alienado".
Referência: CPC/ 1973, art. 370V. Lei n. 6.015/1973, art. 129, § 7º. Precedentes: STJ, REsp 23.039-GO (4ª T, 25.11.1992 — DJ 1º.02.1993); REsp 24.601/ MS (3ª T, 17.11.1992 — DJ 14.12.1992); e REsp 34.276/ GO (3ª T, 18.05.1993 — DJ 07.06.1993) 2a Seção, em 26.04.1995 DJ 05.05.1995, p. 12.000.

4.) Responsabilidade solidária

Se a prova por outro meio da alienação que não o registro no DETRAN isenta o antigo dono do veículo da responsabilidade pelos danos decorrentes de eventual acidente envolvendo o veículo, o mesmo não se pode dizer acerca da solidariedade administrativa do antigo proprietário. Vejamos:

Art. 134, da Lei 9.503/ 1997 ( CTB - Código de Trânsito Brasileiro): "No caso de transferência de propriedade, expirado o prazo previsto no § 1º do art. 123 deste Código sem que o novo proprietário tenha tomado as providências necessárias à efetivação da expedição do novo Certificado de Registro de Veículo, o antigo proprietário deverá encaminhar ao órgão executivo de trânsito do Estado ou do Distrito Federal, no prazo de 60 (sessenta) dias, cópia autenticada do comprovante de transferência de propriedade, devidamente assinado e datado, sob pena de ter que se responsabilizar solidariamente pelas penalidades impostas e suas reincidências até a data da comunicação" (Redação dada pela Lei nº 14.071, de 2020) (Vigência) - Grifo meu.

Importante frisar que o entendimento atual do STJ, assentado por meio de julgamentos da Primeira Seção e das turmas que a compõem, reconhece a aplicação literal do artigo 134 do CTB ao ex-proprietário de veículo automotor que não fez, a tempo e modo, a comunicação da transferência ao órgão executivo de trânsito competente. Vejamos o julgado que traz essa mudança de entendimento:

"PROCESSUAL CIVIL E ADMINISTRATIVO. ART. 134 DA LEI N. 9.503/1997 ( CTB). CONTROVÉRSIA A RESPEITO DA RESPONSABILIDADE POR MULTAS ADMINISTRATIVAS REFERENTES A INFRAÇÕES DE TRÂNSITO PRATICADAS APÓS A ALIENAÇÃO DE VEÍCULO AUTOMOTOR. DEVER DO ANTIGO PROPRIETÁRIO COMUNICAR A TRANSFERÊNCIA DA PROPRIEDADE AO ÓRGÃO EXECUTIVO DE TRÂNSITO DO ESTADO OU DO DISTRITO FEDERAL (...) 4. A jurisprudência contemporânea desta Corte Superior afastou a responsabilidade do antigo proprietário por débitos referentes ao IPVA (Súmula 585/STJ), mas assinalou o seu dever de comunicar a transferência da propriedade do veículo para terceiro ao órgão competente, sob pena de responder solidariamente por infrações de trânsito cometidas após a alienação. Nesse sentido, confiram-se: AgInt no PUIL 1.556/SP, Rel. Min. Sérgio Kukina, Primeira Seção, DJe 17/6/2020; AREsp 438.156/RS, Rel. Ministro Napoleão Nunes Maia Filho, Primeira Turma, DJe 16/12/2019; e REsp 1.768.244/SP, Rel. Min. Herman Benjamin, Segunda Turma, DJe 11/3/2019 (...) (STJ, AREsp n. 369.593/RS, relator Ministro Benedito Gonçalves, Primeira Turma, julgado em 1/6/2021, DJe de 8/6/2021).

No mesmo sentido:

“A responsabilidade solidária do ex-proprietário, prevista no art. 134 do Código de Trânsito Brasileiro - CTB, não abrange o IPVA incidente sobre o veículo automotor, no que se refere ao período posterior à sua alienação”. (Súmula n. 585/STJ) - Acórdãos: STJ, AgInt no AREsp 1193444/ SP; REsp 1692328/ SP; AREsp 1181851/ SP; REsp 1543304/ SP; e AgRg no REsp 1528438/ SP.

Jurisprudência superada:

"Mitiga-se a aplicação do art. 134 do CTB quando ficar comprovada que a efetiva transferência da propriedade do veículo ocorreu antes dos fatos geradores das infrações de trânsito, mesmo que não tenha havido comunicação da tradição ao órgão competente” Acórdãos: STJ, AgInt no REsp 1728465/ RS; AgInt no REsp 1707816/ RS; REsp 1694665/ SP; AgRg no AREsp 811908/ RS; AgRg no AREsp 427337/ RS; AgRg no AREsp 509996/ RS.

5.) Legislação citada:

Art. 620 do Código Civil/ 1916 ="O domínio das coisas não se transfere pelos contratos antes da tradição. Mas esta se subentende, quando o transmitente continua a possuir pelo constituto possessório"; e
Art. 1.267 do Código Civil/ 2002 ="A propriedade das coisas não se transfere pelos negócios jurídicos antes da tradição. Parágrafo único. Subentende-se a tradição quando o transmitente continua a possuir pelo constituto possessório; quando cede ao adquirente o direito à restituição da coisa, que se encontra em poder de terceiro; ou quando o adquirente já está na posse da coisa, por ocasião do negócio jurídico".
Art. 134, da Lei 9.503/ 1997 ( CTB - Código de Trânsito Brasileiro).

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