terça-feira, 10 de outubro de 2023

Médicos devem respeitar sigilo e não denunciar pacientes por aborto

 

O Superior Tribunal de Justiça (STJ) definiu, em julgamentos recentíssimos que o médico não pode acionar a polícia para investigar pacientes que procuram atendimento e relatam ter realizado um aborto fora da previsão legal. Nesses casos deve prevalecer o sigilo profissional em acatamento a legislação penal e ao Código de Ética Médica. O Supremo Tribunal Federal (STF) também julgou um caso, sem, no entanto, analisar o mérito.

Em 14/3/2023, a Sexta Turma do STJ ao julgar o HC 783.927/ MG, da relatoria do Ministro Sebastião Reis Júnior, se constatou a quebra do sigilo profissional entre médico e paciente levando a Sexta Turma a trancar ação penal que apurava o crime de aborto provocado pela própria gestante (artigo 124 do Código Penal).

Além de ter acionado a polícia por suspeitar da prática do delito, o médico foi arrolado como testemunha no processo – situações que, para o colegiado, violaram o artigo 207 do Código de Processo Penal e geraram nulidade das provas reunidas nos autos.

O relator frisou que, são proibidas de depor as pessoas que, em razão de suas atividades profissionais, devam guardar segredo – salvo se, autorizadas pela parte interessada, queiram dar o seu testemunho.

"O médico que atendeu a paciente se encaixa na proibição, uma vez que se mostra como confidente necessário, estando proibido de revelar segredo de que tem conhecimento em razão da profissão intelectual, bem como de depor sobre o fato como testemunha", concluiu o relator.

O ministro mencionou também o Código de Ética Médica, cujo artigo 73 impede o médico de revelar segredo que possa expor o paciente a processo penal e determina que, se convocado como testemunha, deverá declarar o seu impedimento.

De acordo com o processo, a paciente teria aproximadamente 16 semanas de gravidez quando passou mal e procurou o hospital. Durante o atendimento, o médico suspeitou que o quadro fosse provocado pela ingestão de remédio abortivo e, por isso, decidiu acionar a Polícia Militar.

Após a instauração do inquérito, o médico ainda teria encaminhado à autoridade policial o prontuário da paciente para comprovação de suas afirmações, além de ter sido arrolado como testemunha. Com base nessas informações, o Ministério Público propôs a ação penal e, após a primeira fase do procedimento do tribunal do júri, a mulher foi pronunciada pelo crime do artigo 124 do CP.

Ao trancar a ação penal, a Sexta Turma determinou a remessa dos autos ao Ministério Público e ao Conselho Regional de Medicina ao qual o médico está vinculado, para que os órgãos tomem as medidas que entenderem pertinentes.

Já em 03/10/2023, ao julgar o HC 448260/ SP, da relatoria do Ministro Antônio Saldanha Palheiro, restou ementado: "(...) esta Sexta Turma, recentemente, por ocasião do julgamento do Habeas Corpus n. 783927/ MG, de relatoria do Ministro Sebastião Reis Júnior, reconheceu a ilicitude da prova e trancou ação penal também relativa a crime de autoaborto, supostamente cometido por paciente que se encontrava em situação similar a dos presentes autos, cuja investigação fora deflagrada a partir da provocação das autoridades competentes pelo próprio médico que realizara o atendimento da paciente".

"Como bem consignado no parecer ministerial,"trata-se, tal garantia, de proteção jurídica ao direito à saúde, porquanto não deve o paciente se sentir tolhido ou ameaçado ao procurar ajuda médica; ao contrário, deve se sentir seguro e acolhido, para que sua saúde seja resguardada, ao contrário do que ocorreria se, por exemplo, as mulheres que optam pela prática do abortamento ilegal e, ato contínuo, enfrentam complicações que colocam em risco sua saúde e sua própria vida, não pudessem procurar socorro junto aos profissionais de saúde com receio de serem presas ou processadas criminalmente".

Novamente foi reconhecida a ilicitude da prova e trancada a ação penal.

Em 29/6/2023, foi decidido monocraticamente pelo ministro Reynaldo da Fonseca, no HC nº 820.577/ SP, foi analisado ocaso de acusação de aborto contra mulher que passou mal após inserir comprimidos de Cyotec em sua vagina, gerando a necessidade de atendimento em unidade hospitalar, ocasião em que o médico plantonista, com consentimento escrito da paciente, acionou a Guarda Civil Metropolitana para relatar o ocorrido, resultando na instauração de inquérito policial contra ela.

Além disso, após requisição da autoridade policial, o hospital encaminhou às autoridades policiais o exame anatomopatológico do feto e o relatório médico da paciente, sem consentimento da própria.

Após a defesa requerer a nulidade da acusação em razão da violação do sigilo profissional do médico, o TJ-SP (Tribunal de Justiça de São Paulo) denegou a ordem de Habeas Corpus. Já no âmbito do STJ, o ministro relator concedeu a ordem pleiteada para trancar o processo contra a paciente, por violação ao dever de sigilo profissional do médico que a atendeu e a denunciou, consignando que a mulher somente" consentiu com a lavratura do boletim de ocorrência em virtude de ter sido essa a condição imposta pelo médico para lhe atender ", o que" apenas reforça a ilicitude da prova ", já que, em função da" situação de emergência de saúde ", a paciente" não se encontrava, por certo, em condições de dar consentimento válido ".

Ademais, o ministro relembrou que o Conselho Federal de Medicina, no âmbito da Consulta nº 151.842 de 2016, examinou o conflito entre a prevalência ou não do sigilo médico diante de uma situação de aborto, concluindo que," diante de um abortamento, seja ele natural ou provocado, não pode o médico comunicar o fato à autoridade policial ou mesmo judicial, em razão de estar diante de uma situação típica de segredo médico ".

Ainda no sentido de sustentar a vedação legal da notificação realizada pelo médico contra a paciente por ele atendida, o nominado julgador destacou que o artigo 73 do Código de Ética Médica estabelece que"é vedado ao médico revelar fato de que tenha conhecimento em virtude do exercício de sua profissão, salvo por motivo justo, dever legal ou consentimento, por escrito, do paciente. E que na investigação de suspeita de crime, o médico estará impedido de revelar segredo que possa expor o paciente a processo penal".

Em 16/6/2023, o Supremo Tribunal Federal (STF), deparou com o Habeas Corpus ( RHC 217465/ SC) impetrado por uma gestante que fora denunciada pela enfermeira que a atendeu, por ter ingerido o medicamente Cyotec, provocando o aborto em si. Nesta ocasião, o STF, por 3 votos a 2, manteve a acusação de aborto contra a paciente, alegando óbices processuais ao exame da matéria. Acompanhado pelos ministros André Mendonça e Nunes Marques, o relator Ricardo Lewandowski negou seguimento ao mandamus, alegando necessidade de revolvimento probatório para analisar o mérito da questão, o que seria vedado na ação de Habeas Corpus.

No entanto, o ministro Edson Fachin inaugurou a divergência acompanhada pelo ministro Gilmar Mendes, entendendo que a acusação de aborto contra a paciente advinha de prova ilícita, obtida mediante violação do sigilo profissional, em contrariedade às disposições do artigo 207 do Código Processual Penal, concluindo, portanto, que" a enfermeira que atendeu à ré está inserida entre aqueles que deve observar a norma proibitiva, eis que se encontra na condição de receptora de confissão de fato, pela ré, inserido entre os mais caros para a sua intimidade, além de ser protegido pela vedação a autoincriminação ".

Além disso, o ministro Edson Fachin reputou que a acusação contra a paciente violava a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher, do qual o Brasil é signatário, destacando que"o Comitê dos Direitos Humanos o Comitê dos Direitos Humanos tem recomendado que mulheres devem ter condições de acessar os serviços de saúde no pós aborto, em todas as circunstâncias, e em base confidencial, sem enfrentar ameaças de processo criminal ou medidas punitivas (Human Rights Committee, General Comment 36, para. 8)".

Por fim, o ministro Fachin ainda consignou em seu voto que" a persecução instaurada nestes autos é mais uma das medidas que agravam o cenário das questões relacionadas ao aborto no Brasil ", anotando que o óbice à oferta do serviço de saúde às mulheres no pós-aborto" equivale à negação de serviço adequado e não discriminatório, a oferta sem preservar a intimidade da paciente, além do afastamento do direito à não autoincriminação ".

Conclui-se, portanto, que os médicos e demais profissionais da saúde são obrigados a manter sigilo em relação às informações obtidas de mulheres durante atendimentos em que se suspeita de realização de aborto. A divulgação dessas informações para a polícia, Ministério Público ou Judiciário é considerada prova ilegal e, na falta de outras provas, fatalmente leva à absolvição em relação a acusação de crime de aborto.

Tal comportamento pode ter consequências penais, cíveis e administrativas, tanto que nos presentes casos concretos, ao trancar a ação penal, a Sexta Turma determinou a remessa dos autos ao Ministério Público e ao Conselho Regional de Medicina ao qual o médico está vinculado, para que os órgãos tomem as medidas que entenderem pertinentes.

Logo, ao descumprir a lei e denunciar pacientes que provocaram o autoaborto os profissionais da saúde praticam:

Código Penal - Art. 154 - Violação do segredo profissional:

Art. 154 - Revelar alguém, sem justa causa, segredo, de que tem ciência em razão de função, ministério, ofício ou profissão, e cuja revelação possa produzir dano a outrem:
Pena - detenção, de três meses a um ano, ou multa de um conto a dez contos de réis.

Código de Processo Penal - Art. 207 - Proibição de depor:

Art. 207 - São proibidas de depor as pessoas que, em razão de função, ministério, ofício ou profissão, devam guardar segredo, salvo se, desobrigadas pela parte interessada, quiserem dar o seu testemunho.

Código de Ética Médica - Art. 73 - É vedado ao médico:

Art. 73. Revelar fato de que tenha conhecimento em virtude do exercício de sua profissão, salvo por motivo justo, dever legal ou consentimento, por escrito, do paciente.
Parágrafo único. Permanece essa proibição: a) mesmo que o fato seja de conhecimento público ou o paciente tenha falecido; b) quando de seu depoimento como testemunha. Nessa hipótese, o médico comparecerá perante a autoridade e declarará seu impedimento; c) na investigação de suspeita de crime, o médico estará impedido de revelar segredo que possa expor o paciente a processo penal.

Importante ainda destacar:

Supremo Tribunal Federal - Precedente:

RHC 217465 AgR, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, Segunda Turma, julgado em 13/04/2023.

Superior Tribunal de Justiça - Precedentes:

HC 820.577, Rel. Min. Reynaldo Soares da Fonseca, decisão monocrática de 16.06.2023; e HC 783.927, Rel. Min. Sebastião Reis Júnior, 6ª Turma, j. 14.03.2023; e HC 448260/ SP, Rel. Min. Antônio Saldanha Palheiro, j. 03/10/2023.

Superior Tribunal de Justiça - Vídeo - Ministros criticam a condução do Judiciário sobre o aborto tratado no HC 783.927/ MG

Youtube: https://www.youtube.com/watch?v=2zp4lNLP66c&t=86s

Corte Interamericana de Direitos Humanos:

Caso Manuela e outros vs. El Salvador (2021).

Doutrina - clique sobre para ler:

" A vida da mulher e o sigilo médico "- Alberto Zacharias Toron" O aborto e a proteção do sigilo médico "- Luiza A. Vasconcelos Oliver e Maria Luiza de Oliveira Jorge" Denúncia de aborto fere ética, dizem médicos "_ Cremesp" Aborto, sigilo médico e comunicação de crime "- Raphael Diniz Franco;

Fontes: STF, STJ, CIDHConjurUOL" Algemada no hospital ", Folha de SP.



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